Fim da Hipocrisia




Bárbara Jordão Rodhner, Artista
Tu pedes-me sempre as coisas mais incríveis. Dina Maria, quando é que vais parar de ser esta avalanche incrível que és?
Ora sossegada, quieta no seu canto ou com um simples "Psstttt, chega aqui, tive uma ideia."
Lá vens tu a rebolar montanha abaixo, a ganhar força, volume e dimensão com esse teu sorriso enorme e rasgado que nos rompe em três trapos.
Click?
Só tu miúda... Tu que me conheces tão bem porque tu és eu e eu sou tu, sabes quantos clicks tenho eu por dia?
Às vezes recolho-me na toca para fazer o processo inteiro, dignamente até ao fim. Morte, renascimento e morte outra vez.
O último click? O click deste ano? Talvez dos mais fortes nos últimos 35 Invernos, em que varri o mundo de Este a Poente, de Norte a Sul.
Cabo verde mudou-me. Entrar na boca de um vulcão, em pleno pico do verão. Toda despida, descalça, com os pés literalmente a arder na areia/pedra vulcânica preta, mudou-me.
Sim, mas o que me mudou mais, foi no outro dia ter-me sentado na mesa de um bar habitual e banal com uma amiga minha que me queria apresentar a namorada. Pedimos um chá, depois gozámos com a situação e assumimos a bela da taça de vinho.
Entretanto chegou outra amiga delas, que também se sentou e um amigo meu com o seu respectivo namorado. Do outro lado da sala, ouço alguém chamar-me.
- "Bárbara, Bárbara!" - era a irmã de uma amiga minha. Levantei-me, cumprimentei-a, ao qual ela responde, em voz alta:
"Tem cuidado com aquela mesa. Sabes que aquilo contagia-se..."
Olha Dina, tu que me conheces; o tigre, o lobo, espumou, uivou e só não lhe dei uma murraça bem no meio daquela fronha feia - por favor não corrijas isto para uma coisa mais "bonita" -, por respeito à minha amiga porque foi esse e somente esse o meu desejo naquele momento.
Queria sim rebentar-lhe a boca toda. Aquela "puta" hipócrita que tinha um decote até ao rabo, mas em vez disso decidi respirar.
Voltei ao meu lugar. Sentei-me, mas estava cega e já não ouvi nada, nem de um lado, nem do outro, só respirava e respirava para acalmar a ira que é extremamente voraz, no meu caso.
A voz dentro de mim ecoava: Puta de merda! Dormes com tudo o que te aparece à frente e julgas estas pessoas que se relacionam entre elas só porque são do mesmo sexo? Porque!?
Depois questionei-me: E o que é que tu, Bárbara, tens haver com quem é que a outra dorme? Porque hás de chamar-lhe puta, quando tu própria também és uma hipócrita que julga?
O calor a subir. Tornozelos, pernas, barriga, vulva. Caralho! Porque é que não podemos dizer, escrever, fazer, pensar certas coisas?!
Porque é que estamos tão amarrados a estigmas e mais estigmas sobre isto e aquilo?
Porque é que ainda somos este animal de merda que se diz "racional" quando nem a nossa real natureza sabemos, queremos, aceitamos assumir!?
Porque é que salvamos golfinhos, se somos incapazes de nos salvar a nós mesmos desta morte lenta que se chama hipocrisia?
Foi aí que a chama baixou. Fui à casa de banho, limpei as lágrimas que me escorriam pela cara ao relembrar todos os homens que eu amei, que me amaram, que foram meus, a quem eu pertenci, pertenço e pertencerei sempre, a quem eu deixei de falar porque me casei ou que me deixaram de falar porque a namorada não deixa e essas tretas todas que já não fazem nenhum sentido dentro deste mundo que pregamos, de amor, compaixão e respeito pelo outro e por nós mesmos.
Quando é que o amor passou a ser uma arma letal?
Quando é que o sexo passou a ser uma "cena" tarada?
Quando é que a união de dois seres deixou de ser sagrada?
E tu, minha Dina, que me conheces, sabes que eu ardia em febre naquele momento.
Quente, ardente, olhei-me no espelho.
Respirei "agarrada" aos meus olhos e vi cada uma das minhas filhas. As três loiras, que Deus me deu!
E o meu filho, mago mágico. Todos presos a mim, a olharem para mim.
Despi a camisola, mergulhei a cabeça inteira na água e ouvia - salvo seja, senão acham que eu estou doida de vez ;)
- " Não vais fazer nada mãe!?"
Vesti-me, compus-me. Voltei à mesa da miúda que não esmurrei e disse-lhe delicadamente:
- "Foste rude com os meus amigos, logo foste rude comigo. Pede-lhes desculpa, se faz favor."
- "Mas, Bárbara…” – argumentou. “Era para o teu bem..."
- Mão na boca. “Por favor não digas mais disparates e faz o que está certo. Eu ajudo-te."
Estendi-lhe o braço e como uma Maria Madalena arrependida, vi-a levantar-se, olhar nos olhos dos outros seres humanos para se ver inteira nos olhos feridos das minhas amigas. Depois abraçaram-se, sem mais palavras .
Palavras para quê, Dina? Querias um click? Aqui o tens.
Este ano quero libertar-me da minha escravatura mental.
Do certo e do errado. Do bom e do mal. Do preto e do branco. Da esquerda e da direita.
Dina, este ano a revolução não é sexual, é intelectual.
O estigma é racismo; o racismo é astigmatismo; o astigmatismo é doença; a doença é fraqueza; a fraqueza é a ausência; a ausência é o vazio;
o vazio é quase tudo o que nos leva ao ponto de partida.
Ideias empilhadas, tratados e teorias sobre o quê e para quê!?
Este ano quero olhar para mim. Ir para todas as casas de banho do mundo, respirar o tempo que for preciso - agarrada a mim, antes de responder/julgar o outro, porque o outro sou eu e eu sou o outro e isto é a casa da Alice, dentro da cabeça do maravilhoso alucinado L. Carol.
Estou cansada Dina...
Talvez esteja a ficar velha. Rata. Grata!
A luta é interna. A revolução é pessoal, mas por ti, por ti cara amiga, eu partilho isto com todos os pontos nos i's .
- "Querem-me mandar tomates à cabeça?"- Mandem!
Eu até gosto de gaspacho, mas deixem-me em paz com os conselhos e os conselhinhos, do " Não vás por aí."
Se somos todos um, então eu e o Régio fomos definitivamente o mesmo quando atravessámos a noite escura a cantar bem alto o
"Cântico Negro".
Agora vamos as duas juntas, as três, as quatro, os cinco!
Os nossos filhos, netos , bisnetos.
Vamos nos libertar de nós próprios, dos nossos demónios pessoais.
- "Enquanto houver estrada para andar, agente vai andando".
Para acabar, que fique escrito, amo-te e isso não faz de mim "gay" ;) Está!?
Sempre tua.
B